segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

São Paulo - catástrofe ou utopia?

RAQUEL ROLNIK

Observando os desafios que a cidade enfrenta hoje, não tenho dúvidas de que a inércia pode nos levar à catástrofe

Ontem São Paulo completou 461 anos. Como será a cidade daqui a 39 anos, quando completará seu quinto centenário?
Observando os desafios que enfrentamos hoje, um dos cenários é, sem dúvida, catastrófico. Uma cidade sem água apropriada para consumo, sem energia elétrica acessível e produzindo cada vez mais lixo. Na paisagem, mais asfalto e concreto, mais e mais viadutos, pontes e túneis, péssimas calçadas, parques e praças residuais.
E as pessoas, claro, cada vez mais imobilizadas e trancadas: em casas e apartamentos cada vez mais caros, no carro, no trabalho, no shopping. Como em um filme de ficção, será um salve-se quem puder: os milionários, depois de terem extraído toda a riqueza que puderam, terão se exilado em uma colônia em Marte.
Mas também é possível vislumbrar um cenário otimista onde, na comemoração dos 500 anos de São Paulo, podemos ter uma cidade em que o espaço público seja o elemento estruturador, que contará com uma rede de transporte coletivo de alta qualidade, com múltiplos modais, garantindo total liberdade de ir e vir para toda a população... Os espaços privados individuais talvez se tornem ainda menores, mas estarão disponíveis para todos, e a oferta e a qualidade do espaço público e sua utilização democrática serão máximas.
Além disso, graças à recuperação dos mananciais da cidade e da mudança no modelo de gestão e consumo da água, todos os paulistanos poderão usufruir desse recurso. A produção de lixo também será mínima, tanto pela alta capacidade de reciclagem e reaproveitamento quanto pela diminuição do consumo. A maior parte da energia elétrica, em vez de comprada como mercadoria de luxo, será autoproduzida pelos cidadãos em suas atividades.
Mas o que separa a catástrofe da utopia? Não tenho dúvidas de que a inércia pode nos levar à catástrofe. Deixar tudo como está, não enfrentar os desafios que já estão colocados hoje, não promover as mudanças necessárias pode significar que estamos construindo para as próximas gerações uma cidade completamente inóspita.
A utopia, por sua vez, não deve ser entendida como algo impossível. A construção diária da utopia é o que pode nos levar a uma guinada. Para isso, é necessário nos convencermos de que parte importante do excedente de riqueza que a cidade produz deve ser usada para subsidiar suas demandas coletivas. Mas apenas isso não é suficiente. Outra dimensão fundamental é a da mudança cultural, e esta, me parece, já começou a acontecer.
São muitos os movimentos em São Paulo hoje que reclamam maior participação nas definições e decisões de políticas públicas para a cidade, que atuam nos bairros, que reivindicam moradia adequada, áreas públicas, mais praças, parques e espaços culturais. Que não se conformam com a força de um mercado que, da noite para o dia, destrói memórias, afetos e paisagens. Que não aguentam mais o desconforto, a desigualdade e a violência no trânsito e por isso cobram mais eficiência e qualidade no transporte público, mais e melhores espaços para ciclistas e pedestres.
Fortalecer essa cultura na construção da utopia, hoje, é o melhor presente que temos a dar para a São Paulo do futuro. Folha, 26.01.2015.

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