terça-feira, 23 de setembro de 2014

O concreto pede água

Japonês Shigeru Ban abre seminário em SP que debaterá recursos hídricos e arquitetura sustentável

SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
Uma arquitetura que seja sustentável não costuma casar com noções de luxo e glamour. Mas desde que a crise econômica que se arrasta há seis anos tornou cafona a ostentação em projetos mirabolantes, a onda verde pegou.
Rendeu um Pritzker, o maior prêmio da arquitetura, ao japonês Shigeru Ban, conhecido por suas obras em papel, madeira e outros materiais renováveis, e fez até Brad Pitt bancar uma fundação para a construção sustentável.
Ban e dois dos arquitetos --Lars Krückeberg e Tim Duggan-- que trabalham na fundação Make It Right, de Pitt, participam nesta semana do seminário Arq.Futuro, em São Paulo, onde vão falar da gestão de recursos hídricos.
Em plena seca que castiga várias cidades brasileiras, o tema político desbancou questões mais formalistas, como a discussão sobre tendências na arquitetura, ao mesmo tempo em que se firma como uma tendência em si.
Quando Ban, que deve abrir o encontro, venceu o Pritzker em 2013, um sócio da arquiteta Zaha Hadid, também vencedora do prêmio e famosa por projetos extravagantes, tuitou inconformado que o "politicamente correto" estava dominando a área.
Mas não é bem assim. Se é fato que Ban tem um histórico de ceder desenhos para esforços humanitários, ajudando a criar abrigos temporários na Ruanda pós-guerra civil e na Nova Orleans devastada pelo furacão Katrina, ele também tem um pé na ostentação.
Seu projeto mais recente, o Museu de Arte de Aspen, inaugurado na meca do esqui americano em agosto, foi criticado pelo uso apenas decorativo de suas soluções estruturais recicláveis, como as vigas de papel reforçado, que ali não sustentam o prédio, mas servem de adorno.
Da mesma forma que sua filial do Pompidou em Metz, na França, também usa estratégias parecidas. Ou seja, o sustentável já virou fetiche e arrisca se esgotar como tendência em vez de se firmar como uma solução na arquitetura.
"Achamos de verdade que todos deveriam viver felizes em comunidades verdes, mas muita gente só quer sair abraçando árvores", diz Tim Duggan, da Make It Right. "Só que como isso não faz sentido para os banqueiros, procuramos fazer algo sustentável também do ponto de vista econômico."
Ele reconhece que ter Brad Pitt como dono e garoto propaganda da fundação ajuda a executar os projetos, que começaram pela revitalização de Nova Orleans. "O Brad empresta seu carisma e também o talão de cheques", diz.
Mas frisa que os projetos estão ancorados em estudos dos lugares onde trabalham, em especial o comportamento da água nessas cidades, do tratamento do esgoto à absorção da chuva pelo solo.
Fora do campo arquitetônico, o artista Caio Reisewitz lança durante o encontro com uma nova série fotográfica em que registra a crise de abastecimento da água em São Paulo, com imagens aéreas das represas que servem a cidade feitas nas últimas semanas.
Ele imprimiu as fotos com as cores invertidas, enfatizando os tons de vermelho nas represas esvaziadas. "Assumi o lado negativo das imagens, mas não faço isso para entrar no debate eleitoral. Essas questões sempre estiveram no meu trabalho", diz Reisewitz.
ANÁLISE

Arquitetura sustentável já deixou o nicho ecologista

RAUL JUSTE LORESEM NOVA YORK
É oportuno que o tema deste Arq.Futuro seja a água. Enquanto descobertas de petróleo pipocam por todo o mundo e nem a crise no Oriente Médio faz seu preço disparar, a água se torna um bem cobiçado e raro. Na Califórnia, a seca prolongada guia diversas mudanças permanentes em como o Estado taxa e regula o uso da água.
Arquitetura sustentável, como marca, é marketing velho: hoje toda arquitetura precisa pensar em um mundo de recursos naturais mais escassos e de mudanças climáticas.
Felizmente, há melhores condições de vida para milhões de pessoas mundo afora, especialmente na Ásia e na África, graças à globalização, mas todas essas novas bocas comendo (e consumindo) mais significa que o impacto humano sobre o planeta vai aumentar.
Racionalidade versus desperdício também deve guiar toda a arquitetura, não a apenas apelidada de "verde".
Vários debates desta edição do Arq.Futuro provam que o assunto já deixou as fronteiras do "nicho" ecologista.
A inundação provocada pelo furacão Katrina em Nova Orleans, em 2005, gerou um desafio de como se construir casas em áreas de enchentes constantes. A ONG Make It Right, que participa do evento, conseguiu atrair diversos arquitetos que vieram com soluções muito além das casas suspensas, com o térreo bem elevado.
Houve pesquisa e uso de concreto poroso para absorver a água das chuvas, coberturas verdes, novos sistemas de ventilação, encanamento, ventilação e aquecimento previstos no design. Essas pesquisas podem ser disseminadas muito além de Nova Orleans.
Um dos arquitetos participantes do Make It Right, o japonês Shigeru Ban, também estará em São Paulo --ele foi um dos pioneiros em trabalhar com materiais recicláveis e baratos, de tubos de papelão a bambu, em áreas afetadas por desastres naturais e tem muito a dizer.
A devastação provocada pela supertempestade Sandy em Nova York, em 2012, com a alta do nível do mar, guia pesquisas de Alexandros Washburn, que foi diretor de design urbano durante a gestão do prefeito novaiorquino Michael Bloomberg e fala nesta quarta (24) no evento.
Mas nem sempre a boa arquitetura vem acompanhada de bom urbanismo: as belas casas sustentáveis de Nova Orleans formam um bairro exclusivamente residencial e bem afastado do centro da cidade, mantendo a suburbanização existente pré-Katrina.
Para ir ao trabalho ou fazer compras, seus moradores continuam a depender de longas (e nada sustentáveis) viagens de carro. Folha, 23.09.2013.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Empresas darão força a acordo climático global: PARA CHEFE DO PAINEL DO CLIMA, SETOR PRIVADO VAI PERCEBER QUE O CUSTO DA INAÇÃO CONTRA O AQUECIMENTO É ALTO DEMAIS

ENTREVISTA - RAJENDRA PACHAURI

MARCELO LEITE - DE SÃO PAULO

O engenheiro eletromecânico indiano Rajendra Kumar Pachauri, 74, ganhou fama mundial à frente do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na abreviação em inglês), que preside há 12 anos. Boa fama e má fama, que ele no entanto está conseguindo superar.
O auge veio em 2007, quando ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz em nome dos milhares de especialistas que compõem o painel reunido pela ONU. Foi no mesmo ano em que se publicou o "Quarto Relatório de Avaliação" (AR4) do IPCC.
Dois anos depois, o AR4 enfrentou um forte questionamento da previsão de que as geleiras do Himalaia se derreteriam até 2035. Reconheceu o erro, mas sua reputação saiu arranhada. Depois veio o escândalo do "climagate": vazaram para a imprensa mensagens eletrônicas entre cientistas do ramo que davam a impressão de conluio entre eles para pintar um quadro mais alarmante sobre o futuro do clima.
Pachauri sobreviveu a tudo isso e comandou o lançamento, no ano passado, do quinto relatório (AR5). Reconhece, porém, que a controvérsia contribuiu para melhorar os controles no IPCC.
Hoje, Pachauri considera que o ímpeto para combater os efeitos da mudança do clima depende menos dos pesquisadores e dos governos centrais e mais dos empresários e governos locais. "Não acredito que um pacto internacional seja o único meio com o qual possamos e devamos combater as mudanças climáticas."
Leia trechos da entrevista que Pachauri deu por escrito após participar de um seminário da Fundação Ford no Rio de Janeiro.
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Folha - Quais são suas expectativas para a cúpula do clima de Paris em 2015? Existem condições econômicas e políticas para os países que mais emitem gases-estufa se comprometerem a fazer reduções significativas?

Rajendra Pachauri - Não posso me pronunciar quanto à Conferência de Paris, mas posso afirmar que as estimativas dos custos da mitigação das emissões de gases-estufa variam muito.

Nos cenários do tipo "business as usual" [mais do mesmo], a economia cresce entre 1,6% e 3% ao ano. A mitigação ambiciosa reduziria esse crescimento em cerca de 0,06 ponto percentual, o que parece um preço muito razoável a pagar. Ademais, as estimativas não levam em conta os benefícios da redução das mudanças climáticas, incluindo o de evitar sofrimento humano incalculável.
Portanto, acho que é um equívoco dizer que um acordo global para combater as mudanças climáticas teria consequências econômicas negativas. Por outro lado, sabemos que quanto mais tempo esperarmos para agir, mais alto será o custo da ação no futuro.

Por que o conjunto impressionante de conhecimentos científicos acumulado pelo IPCC ainda não foi capaz de empurrar tomadores de decisões em todo o mundo na direção da ação efetiva contra a mudança climática?
Alcançar acordos globais quase sempre requer muitos anos, até décadas. Embora eu tivesse preferido contar já há muito tempo com um pacto global com obrigações legais para reduzir as emissões de gases do efeito estufa, não estou surpreso com o ritmo das negociações.
Não acredito que um pacto internacional seja o único meio pelo qual possamos combater as mudanças climáticas. Me sinto encorajado pela consciência crescente de governos locais e empresas de que eles precisam agir a esse respeito. Estados da costa oeste dos EUA e a Colúmbia Britânica [no Canadá], por exemplo, firmaram um pacto para coordenar políticas relativas às mudanças climáticas. E mais empresas estão tomando consciência dos riscos que enfrentam se nada for feito em relação às mudanças climáticas. Quando essa consciência alcançar uma massa crítica --e creio que estamos chegando a esse ponto--, veremos uma poderosa força em favor da ação vinda do setor das empresas.

Um relatório lançado nos EUA, "Risky Business" (negócio arriscado), defende a tomada de ações imediatas contra as mudanças climáticas, usando o raciocínio das seguradoras para convencer líderes empresariais a engajar-se nesse esforço. O senhor acha que esse é o caminho certo para superar a polarização entre os conservadores ("céticos") e progressistas ("crédulos")?
O relatório é uma avaliação séria dos riscos que setores empresariais chaves nos EUA vão enfrentar se não fizermos nada para impedir as mudanças climáticas. A partir do momento em que os empresários compreenderem o custo de não fazer nada, eles podem tornar-se uma força vital em favor de mudanças ao nível governamental.

O sr. considera superada a controvérsia em torno do "Quarto Relatório de Avaliação" (AR4) e suas fontes em artigos que não passaram por revisão científica? Quais são as consequências desse episódio para a reputação do IPCC?
A crítica fez do IPCC uma organização mais forte, aberta. Primeiro, a direção do IPCC promoveu uma conscientização entre os autores com relação ao controle de qualidade de fatos relatados. Em segundo lugar, o processo de revisão foi intensificado. Mais especialistas participaram da revisão de textos provisórios, o número de editores aumentou e seu trabalho foi intensificado. E os governos que constituem o IPCC agora têm mais consciência de suas responsabilidades na garantia de qualidade.
Também é importante observar que a "literatura cinza" [que não passa por revisão científica] é um componente importante dos dados relativos às mudanças climáticas. Ela inclui relatórios de governos, da indústria, de instituições de pesquisa, organizações internacionais e outras como o Banco Mundial, a Agência Internacional de Energia, a OCDE etc.

O sr. está satisfeito com a resposta dada ao mais recente relatório do IPCC pelo público e pelos responsáveis por formular políticas públicas?
A recepção tem sido positiva, ressaltando a distância que o mundo já percorreu entre discutir os aspectos científicos das mudanças climáticas e discutir o que fazer frente a elas.
Existe 95% de probabilidade de a influência humana ter sido a causa dominante do aquecimento observado desde meados do século 20. O relatório também chamou a atenção para potenciais soluções para mitigar e adaptar-se às mudanças climáticas.
Precisamos de um diálogo mais robusto sobre como implementar essas soluções.

O ritmo das mudanças climáticas parece ser lento, como indicam as flutuações dos últimos 15 anos. Isso não nos dá tempo suficiente para desenvolver fontes energéticas alternativas e concentrar os esforços de redução de emissões para depois de 2050?
O ritmo das mudanças climáticas não diminuiu. Se você olhar para o sistema climático inteiro, e não só as temperaturas superficiais, o que verá é um aquecimento contínuo e acelerado.
A atmosfera e os oceanos se aqueceram, a quantidade de neve e gelo diminuiu, o nível do mar subiu e as concentrações de gases-estufa aumentaram.
A Organização Meteorológica Mundial confirmou recentemente que 13 dos 14 anos mais quentes da história ocorreram no século 21. A década 2001-2010 foi a mais quente já registrada.
É verdade que o índice de aquecimento superficial entre 1998 e 2012 é mais baixo que o índice desde 1951. Mas pausas como essas já ocorreram no passado, apenas para serem seguidas por elevações de temperatura acentuadas. Portanto, não houve pausa no aquecimento total. Logo, não temos tempo adicional para implementar soluções.
Sabemos que as mudanças climáticas já têm efeito sobre a agricultura, a saúde, os ecossistemas, os recursos hídricos e os meios de subsistência. O aspecto que chama a atenção nos impactos é que estão correndo dos trópicos aos polos, de ilhas pequenas a grandes continentes e dos países mais ricos aos mais pobres. E temos sinais precoces de que o sistema de recifes de corais e o sistema ártico estão passando por modificações irreversíveis. Folha, 10.09.2014.
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